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“Diz que meu pai fez uma encomenda de pregos e quando chegou aquele carregamento, veio pelo trem, meu Deus, foi um absurdo, colocaram um zero a mais na quantidade. O sogro dele, o meu avô, dizia: ‘O Waldemiro é louco’.
E como ele vai pagar tudo isso? Como vai vender tudo isso? Era prego pro resto da vida, não ia conseguir vender. Mas durante a Segunda Guerra faltou pregos, e ele vendeu para o Brasil inteiro e ganhou muito dinheiro. Minha mãe sempre contava. Aí ele comprou na Marechal Deodoro e construiu rapidamente o sobrado de dois andares”.
É com essa história espirituosa de um zero e muitos pregos que Áurea Schmitz, 63 anos, começa a falar do lugar onde passou várias fases da vida.
As portas da frente davam para a Avenida Marechal Deodoro da Fonseca pavimentada de paralelepípedos, bem em frente a Prefeitura, e as vitrines chamavam os clientes que passavam pelo centro de Jaraguá do Sul.
Por cerca de 60 anos, a Casa Schmitz abasteceu os moradores com itens diversos – especialmente louças, panelas, potes, bacias, brinquedos, até foguetes, armas e munições. Muitas raridades do estoque da loja, coisinhas comuns do dia a dia, Áurea mantém até os dias de hoje.
Negócio de família
Áurea foi a quinta filha do casal Waldemiro e Hildegard Leutprecht Schmitz – que depois dela ainda tiveram dois filhos.
A história da loja se mistura com a da família de Hildegard. Áurea conta que o avô Inácio, vindo de São Paulo com tino para vendas de secos e molhados e aptidão como queijeiro, aqui acabou seguindo nas vendas de “fazenda”.
No casarão da esquina da Marechal com a João Zapella, também tombado como Patrimônio como a Casa Schmitz, ficava a chamada Casa Leutprecht.
Era o lugar onde se encontrava tudo para costura: tecido, linha, agulha, botões – em uma época em que toda roupa era feita na costureira. A herança desse negócio sobrevive na Loja Dona Hilária, que carrega o nome da tia de Áurea que trabalhou anos com seu Inácio.
Dessa mesma forma, muitos irmãos de Hildegard seguiram no ramo das vendas. E ela, ao lado do marido e dos filhos, conforme iam crescendo, mantinha o negócio em funcionamento.
Áurea lembra de trabalhar na loja desde os 12 anos. Do quarto dela e de três irmãs, no segundo andar, lembra de ouvir as batidas do pai no teto – o chamado para descer e ajudar.
“Meu pai tinha um pegador para pegar as coisas do alto e descer, uma coisa com mola, dois cabos de vassoura que ele inventou, ele pegava aquele troço e batia lá no forro”, conta.
Para ela, atender as pessoas, fazer pacotes de presentes, foi se tornando uma verdadeira habilidade – e aos poucos foi nascendo uma vendedora de mão cheia.
Como três irmãos mais velhos saíram de casa para estudar e uma irmã foi criada pela avó, entre os mais velhos, foi ela quem acabou ficando mais tempo ligada diretamente com a loja.
Rotina de outros séculos
A Casa Schmitz começou oficialmente numa salinha do avô Inácio, na rua João Zapella. Depois veio a mudança, entre 1954 e 1955 para a Marechal.
O prédio de 360 metros quadrados era local de trabalho e residência. Embaixo, na parte da frente, ficava a ampla loja. Atrás tinha sala de jantar, de visitas e cozinha. Em cima tinham os quatros e Áurea lembra do imenso banheiro.
Mesmo com o depósito da loja nos fundos e lavanderia, ainda sobrava muito terreno.
“E na lateral da casa o pessoal vinha sábados e domingos, tocava a campainha para comprar fogos. A gente vendia o tempo todo, até deixava separado porque todo mundo queria. Era uma loucura”, conta. “A gente deixava uma pilha de foguetes e passava pela janela. Eles entregavam dinheiro e a gente passava os fogos”.
Áurea viu a loja ir dos dois extremos: do crescimento para ter cada vez mais coisas diferentes para oferecer aos clientes, até a redução, pouco a pouco.
“Louças, panelas, foguetes, armas e munições, porcelanas, cristais, brinquedos, cada vez foi ampliando mais. Depois cada vez foi se eliminando, primeiro em 1980 ‘e pouco’ a gente deu baixa em armas e munições, depois começamos a parar com os plásticos, quando surgiu as lojas de 1,99, não vendia mais, antes vendia bacias, banheiras”, comenta.
Depois, com grandes lojas especializadas como a Color na cidade, também pararam de vender os brinquedos.
“Antigamente armas e munições, fogos de artifício e redes para pesca era o que mais se vendia. E brinquedos, brinquedos era uma loucura”, conta.
Na época que antecedia o Natal, ela lembra que a loja fechava por volta das 8 horas e ficavam até meia noite repondo as prateleiras. Algo que lembra com muito alegria: anotar o que faltava, ir ao depósito e repor as caixas enormes em seus devidos lugares.
Nos últimos anos ficaram as panelas, cristais e porcelanas, que vendiam muito.
- A caravana da identidade
Áurea conta que vender armas e munições exigia muito rigor. Por muitos anos ela foi encarregada de fazer os chamados mapas, que eram entregues ao então Ministério da Guerra mensalmente.
Era um inventário que precisava ter minuciosamente o estoque dos itens na loja. A cada três meses, era feita uma contagem – todos os números precisavam bater.
Da mesma forma, tinha todo um processo para comprar uma arma. Uma das exigências era ter carteira de identidade – numa época em que quase ninguém tinha.
Para isso, eles foram empreendedores. Organizavam idas para Joinville, cerca de duas por semana, para emitir as identidades na Delegacia Regional de lá, já que aqui não havia o serviço.
Filhos formados
Estar na Casa Schimitz fazendo as vendas era uma das alegrias de Waldemiro. Ele vivia no estabelecimento e gostava muito de ficar na frente da porta observando a saída da escola.
“Era a vida dele na loja, sempre. Minha mãe também, mas era mais o pai mesmo. A mãe costurava muito pra gente, cuidava da casa, era muita função”, conta.
E uma das coisas que ele frisava muito, era a importância dos filhos estudarem.
“O interesse do meu pai sempre era a faculdade, ele dizia: ‘Uma coisa que eu vou me esforçar para dar pra vocês, um bom ensino é minha herança, porque isso ninguém pode tirar de vocês’”, relembra.
E assim foi, os mais velhos saíram da cidade para completar ensino superior e Áurea até pensou em ir a Curitiba. A ideia era tentar faculdade de direito ou jornalismo na federal, mas os planos mudaram.
“O pai veio e me disse: ‘Áurea, queria te perguntar um negócio, se não for realmente tua vontade em ser jornalista e advogada, você podia ficar conosco e fazer a faculdade que tem aqui, porque a gente precisa de você aqui”, conta.
Áurea já estava namorando sério e por fim decidiu ficar em casa, trabalhando na loja, e acabou sendo aluna da segunda turma da recém fundada Ferj, de estudos sociais.
- Um jeito de estudar
Com uma casa grande e loja concorrida, muitos funcionários passaram pelo local. Áurea conta que muitas famílias levavam suas filhas para trabalhar ali em troca de estudo.
“As moças que vinham trabalhar na loja vinham dos bairros, Santa Luzia, Nereu”, conta. Elas passavam a semana na casa, faziam os trabalhos e assim tinham como frequentar os anos mais avançados, já que não existia transporte diário para o centro.
“Aos domingo a gente levava elas para casa, para verem os pais. A gente ia lá naqueles terrenos enormes, eles faziam aquele almoço, brincávamos nos riachos, a noite íamos embora, quando não vínhamos cheios de presentes: frango, ovos, essas coisas”, relembra.
Partida inesperada de Waldemiro
A morte do patriarca da família foi inesperada. Um infarto. Seu Waldemiro tinha 61 anos. Era 1979, um mês antes do casamento de Áurea. “Foi um baque”, comenta.
Com isso, ela conta que a mãe acabou assumindo a loja e tocou o negócio por cerca de 30 anos. Áurea seguiu trabalhando algum tempo depois, mas acabou indo trabalhar na empresa do marido.
Nos últimos anos, os caçulas da família Etel e Paulo que estavam mais ativamente com a mãe, e depois o cunhado Renato – que começou a trabalhar ali e acabou entrando para a família.
A matriarca faleceu em 2010 e a loja seguiu no local por mais dois anos, mas com porte bem menor. O irmão tocou por mais um tempo em outro local e depois fechou.
O casarão foi vendido em seguida para o comerciante Jairo Muller, que anos antes havia comprado a casa ao lado, onde por muitos anos foi a loja Kopman.
Como é uma estrutura tombada, ela foi inteiramente restaurada e segue com o vai e vem de vendas e mantém, de alguma forma, uma parte desse capítulo da história da cidade visível a quem passa.
A herança familiar certamente ficou muito além das paredes ainda de pé. Áurea conta que os Waldemiro e Hilde prepararam os sete filhos – a irmã Maria Elisa, em memória – para a vida e, claro, formaram grandes vendedores.
Todos tiveram tino para os negócios. Depois da loja, Áurea passou alguns anos trabalhando na empresa Menegotti, mas não era sua paixão.
Depois abriu a loja “Doce Sonho” – nomeada assim porque pelo seu sonho de trabalhar no comércio novamente – que fornecia doces. Hoje ela aproveita a vida que construiu, já aposentada, compartilhando memórias com irmãos, filhos e netos.
Sobre o artigo que você leu
“Como vai você?” é uma série sobre o reencontro com personagens que se tornaram conhecidos em nossa região. São pessoas de quem lembramos vez ou outra, e agora queremos chamar para bater um papo e saber como estão. Você tem um nome para sugerir?
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