Desde o início da história, a comunidade surda se esforça para ter os direitos reconhecidos e conquistar uma sociedade mais igualitária. Um dos principais marcos dessa luta ocorreu em setembro de 2010, com a regulamentação da profissão de tradutor e intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), regulamentada pela Lei nº 12.319.
O intérprete de Libras é fundamental para a promoção da inclusão de pessoas surdas e do acesso à informação a respeito de temas que essa comunidade não teria acesso se não fosse por intermédio de um tradutor. O profissional garante que toda a comunidade consiga interpretar os usuários da Língua Brasileira de Sinais, por meio da “tradução” da língua oral-auditiva para a língua visuoespacial, e vice-versa.
Um intérprete pode atuar em diferentes contextos e ambientes, como escolas, universidades, repartições públicas, órgãos administrativos, congressos, empresas privadas, seminários e programas de televisão, além de inúmeros outros.
Fernando Castellari tem 26 anos e é um dos intérpretes de Jaraguá do Sul que ajuda a proporcionar uma comunicação mais clara e inclusiva e garantir a integração da comunidade surda na sociedade. Formado em Pedagogia e concluindo a formação de bacharel em Letras-Libras, ele tem uma grande experiência com a comunidade surda da região e é inclusive tesoureiro da Associação dos Surdos de Jaraguá do Sul (ASJS).
O lema de Fernando é “a minha voz também está em minhas mãos”. Para ele, interpretar Libras é uma maneira de ajudar pessoas e contribuir significativamente com a sociedade. “Hoje as Libras têm mais visibilidade, mas antes já foi algo mais raro. Eu vejo que ajudo muito as pessoas a não ficarem caladas, se eu vejo um problema eu vou lá e interpreto. Dou voz e ouvidos para um surdo e acho isso extremamente importante para inclusão.”
Recentemente, ele viralizou nas redes sociais após o trabalho no Primavera Sound, festival de música, que, segundo a organização, reuniu cerca de 55 mil pessoas por dia no Distrito Anhembi, localizado na zona norte de São Paulo. De acordo com Fernando, ele foi encontrado pela empresa responsável pela acessibilidade do evento, a All Dub Estúdio, através do Instagram, onde ele tem uma conta profissional (@fernando_interprete) em que publica conteúdos sobre seu trabalho como intérprete.
O evento foi de grande abrangência e repercussão, e contou inclusive com o show do cantor Travis Scott, que recebeu mais de 70 mil pessoas, além de outros famosos internacionais como Lorde, Arctic Monkeys e vários outros. Artistas nacionais também marcaram presença: Tasha & Tracie, Jovem Dionísio, L7nnon. “Eu não sabia o tamanho do evento inicialmente, achei que era algo mais tranquilo, mas é algo muito grande, como se fosse um Lollapalooza”, explica Fernando.
Mas foi durante o show de Charli XCS, cantora e compositora britânica, que Fernando viralizou nas redes sociais, através do Twitter, e conquistou admiradores em todo o mundo. Charli lançou, em março deste ano, o quinto álbum da carreira, “Crash”, que dominou o repertório dos shows, além de hits de discos anteriores.
“Interpretei vários shows, todos internacionais, e um deles foi da Charli, quando um rapaz gravou o show e publicou no Twitter elogiando o meu trabalho como intérprete. Muitas pessoas começaram a interagir com a publicação. Fiquei muito feliz”, declara o intérprete.
Mas o trabalho de Fernando recebeu ainda mais atenção quando a própria cantora postou um vídeo da interpretação no Instagram. Uma empresa de comunicação de São Paulo também postou o vídeo, elogiando a interpretação.
“Depois do evento eu recebi muitas mensagens, principalmente no Twitter, de surdos me elogiando, então isso agrega muito pra gente, fortalece bastante, o sentimento aumenta. Isso é um combustível, uma sensação agora muito boa. No Instagram também recebi muitas mensagens, ganhei bastante seguidores, então esse carinho é algo que não tem como se expressar”, explica Fernando.
“Quando eu vi que teriam cantores internacionais, eu pensei que não iria interpretar elas por ser em inglês, porém a gente fazia a interpretação do inglês para portugues e do português para libras. Eu fiquei bem próximo deles, tentei passar a mensagem, transmitir a energia do cantor, do artista. Mas realmente é uma sensação muito boa, uma responsabilidade muito boa”, completa.
Fernando contou ao Por Acaso como descobriu o dom da interpretação de Libras. Ele trabalha há cerca de cinco anos na área em uma escola de Jaraguá do Sul, e há cerca de dois anos começou a trabalhar também em eventos. “Estudei com uma surda, então eu sabia o básico, mas depois fiz um curso, quando a professora falou que eu tinha vocação para a área e deveria focar. Fiz mais cursos, a faculdade, e trabalho com isso até hoje”, conta.
“O meu papel é transpassar com clareza tudo o que é passado para mim. Tenho que transmitir com sentido e compreensão da melhor forma e mais clara e nítida possível”, diz.
O que é necessário para se tornar um intérprete de libras?
Para se tornar um intérprete de Libras é preciso, ao menos, o ensino médio completo, juntamente com a realização de cursos profissionalizantes e formações continuadas ofertadas por meio das secretarias de educação e instituições de ensino superior. Para ser um profissional regulamentado, é preciso ter uma formação reconhecida na área.
No que diz respeito à formação superior, atualmente é possível fazer um curso de Licenciatura em Letras, com habilitação em Libras. Outra opção, é fazer uma graduação em Fonoaudiologia com ênfase em Libras. Pessoas que já são formadas em outra área podem optar por fazer uma Pós-Graduação em Libras, com o objetivo de se aperfeiçoar.
Porém, de acordo com Fernando, o mais importante é interagir com a comunidade surda e assim descobrir as necessidades e dificuldades que essas pessoas têm. “Você só se torna um bom intérprete quando tem a experiência, a vivência de conviver junto com os surdos”, comenta.
Experiência na região
Em Jaraguá do Sul, o intérprete começou a participar dos encontros da Associação de Surdos. Ele explica que a comunidade surda costuma reunir-se em diversos lugares, fazendo diferentes eventos e encontros. Foi em um desses encontros que Fernando se tornou o tesoureiro da associação, durante uma reunião para discutir os cargos.
Além da experiência em escolas e com a associação, ele também costuma trabalhar em outras ações, na área política, cultural (em eventos como Jaraguá em Dança e Femusc) e empresarial, para grandes empresas, como a WEG.
“Um dos maiores desafios é quando você é convidado para interpretar e não sabe o assunto que é para interpretar, aí não consigo fazer uma preparação antes e é uma grande dificuldade”, conta.
Próximos planos
Na última sexta-feira (11), Fernando fez a interpretação em libras da banda Pedra no Rim na 32ª Schützenfest, ação que trouxe inovação e inclusão para a festa. Pela primeira vez, toda a apresentação foi interpretada em Libras, o que representou um passo importante em termo de inclusão social.
Mas o trabalho não para por aí. Fernando revelou uma informação exclusiva para o Por Acaso. “Tem um evento bem grande para vir para cá, é um show internacional de uma famosa bem grande e essa mesma empresa que me contratou vai cobrir e perguntaram se existia a possibilidade de eu cobrir esse evento.” O intérprete preferiu não citar o nome da cantora, já que a situação ainda não está totalmente definida.
“Eu gosto bastante da comunidade surda, da língua de sinais. Eu sempre falo que às vezes as libras são minha primeira linguagem, porque quando estou nervoso eu prefiro sempre em libras do que no português. Quando estou com eles fico a vontade, a gente brinca e conversa e até esqueço que eu sou ouvinte. É algo muito presente na minha vida”, finaliza.