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Essa matéria foi uma sugestão do nosso leitor Paulo Floriani, agradecemos a ele por nos apresentar essa pessoa tão encantadora. Não deixem de mandar sugestões!
Fidélia Lenzi Dias me recebeu incerta se teria alguma coisa para me contar, pedindo desculpas pela memória meio vaga aos 88 anos. Saí de sua casa 2 horas e meia depois sentindo que ainda faltou muito a ser dito e com a certeza de ter conhecido uma das grandes guardiãs da história de Jaraguá do Sul.
Se a memória de dona Fidélia é falha, melhor nem contar pra ela da minha. Ela diz que foram as gratas homenagens a sua família que a fizeram resgatar muitos fatos – seja por conta de seu pai, Giardini Lenzi, o fundador o bairro Vila Lenzi, ou por sua trajetória mesmo, de 30 anos como uma dedicada professora.
Uma época tão saudosa, que as lágrimas ainda brotam aos olhos ao recordar as aulas na escolinha de Ribeirão Grande do Norte – uma construção em ruínas atualmente, mas que tem promessa de ser reformada, para alegria de Fidélia.
Não bastasse a vida de professora, a aposentadoria trouxe outros desafios. Ainda não era hora de parar, e lá se vão 40 anos de trabalhos voluntários.
Uma vida agitada
“Quando eu me aposentei eu fiquei assim: mas e agora, não vou fazer nada? O que eu vou fazer? Então fiquei chateada de ficar em casa”, conta.
Primeiro veio a fundação de um clube, junto com colegas, de professoras aposentadas. Os encontros seguem até hoje às segundas, a cada 15 dias.
Depois, veio o convite de se juntar a outras mulheres e participar a fundação da Rede Feminina de Combate ao Câncer de Jaraguá do Sul.
Desde então, dona Fidélia trabalhou como voluntária até ano passado – só parou mesmo porque as pernas não aguentam tanto tempo de pé. Ela segue como fundadora, participando de reuniões mais pontuais e eventos.
Mas as ela não parou por aí e também participou da criação do coral do Circolo Italiano da cidade – coisa que ela não abandona de jeito nenhum. “Eu gosto muito de cantar”, afirma.
E daí vem a alegria de participar em eventos da região levando um pouco dessa cultura, na maioria das vezes, os cantores tiram do bolso para fazer as apresentações. “É também um trabalho voluntário”, pontua.
Um dos momentos prediletos dela são os eventos de aniversário de Nova Trento. O coral é levado a cidade com as despesas pagas e passa dias cantando para os turistas, faz um desfile.
Desde pequena, muito grande
Quem vê Fidélia Lenzi atualmente, deve ser perguntar de onde vem tanta disposição. Mas é olhar um pouquinho de perto a história dela, e já se vê que ela sempre esteve assim, ritmada, adiantada.
A ex-professora nasceu em outubro de 1931, em Ribeirão Grande do Norte. Era a primeira filha de muitos do casal Giardini e Maria Lenzi.
Ele, era professor do curso primário, e assim, desde cedo, levava a pequena Fidélia para a escola. Sem nem começar os estudos formalmente, ele já lia e escrevia fluentemente aos 5 anos e ainda ajudava os que tinham dificuldade.
“O papai sempre dizia assim: você vai seguir a minha carreira, você vai continuar estudando. Um dia você vai assumir a minha escola”, relembra a previsão de Giardini.
Depois que ela avançou todas as turmas disponíveis na pequena escolinha, o pai a internou no Colégio São José, em Corupá. A estrutura existe até hoje com o mesmo nome, mas na época era um internato para meninas, comandado por freiras franciscanas.
Dos dias no internato
Fidélia lembra com saudade dos quatro anos na companhia das irmãs, onde fez o chamado curso complementar e aprendeu línguas.”Não se ensinava o inglês: era francês, grego e latim. Isso naquela época”, ressalta.
Das memórias, uma das mais vívidas é de acompanhar a diretora do colégio, irmã Serena, nas visitas ao irmão dela no Seminário; ninguém menos do que o padre Aloísio Boeing.
“Toda quarta-feira a tarde ela ia tomar café com o padre Aloísio. Do colégio, atrás da Igreja, nós íamos a pé até o Seminário. As irmãs gostavam de mim e eu tinha que acompanhá-las”, conta.
Outra memória histórica foi com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, ano em que ela se formou.
“Nós fomos receber os pracinhas que vinham de trem. E quando chegou o dia, a irmã disse para mim: Fidélia, você vai fazer um discurso porque nós vamos fazer uma homenagem para os pracinhas na estação. Ela escreveu uma folha inteira e fez eu estudar a tarde toda. O trem vinha buzinando desde a Serra e o povo, assim, na estação esperando os pracinhas”, relembra.
Aos risos, Fidélia lembra do apelido dado a ela pelas freiras: Polentinha, por conta de sua descendência italiana.
Professora ou médica?
Finalizados os estudos no São José, era hora da formação profissional e Fidélia fez o curso normal regional do Divina Providência e depois o magistério – também um internato de freiras na época.
Eu sai do colégio de Corupá, mas ainda não estava bem formada, só tinha o curso complementar. Daí saiu o curso normal regional no Divina. Papai me internou aqui para fazer o normal regional e depois eu fiz o magistério também no Divina.
“E comecei a trabalhar. Mas a história é outra, eu queria fazer o curso de medicina. Eu tinha adoração pela medicina. Aí eu pedi para o papai, ele me levou para Florianópolis e me internou no Divina em Florianópolis. Eu fiz o vestibular, passei, mas eu tinha uma avó, mãe da mamãe veio da Hungria, e ela era chata”, comenta aos risos.
Fidélia lembra que quando estava para ir para a capital, a avó passou dias falando que ela era a filha mais velha, e deveria ficar em casa, ajudando a mãe.
A voz da avó ficou em sua cabeça que lá em Florianópolis ela desistiu de fazer o curso e acabou fazendo a escola de vagas no estado para dar aula na pequena escola de Ribeirão – a mesma em que tinha estudado.
De alguma forma, esse desejo de estudar e seguir a medicina passou de geração. Fidélia tem três netas nesse caminho, duas médicas já formadas e uma na faculdade. A avó se realiza: “todas elas tiveram a minha ideia”, diz, bem humorada.
- O nome de uma bela cigana ‘húngara
“Meu nome minha avó trouxe da Hungria, por isso que não tem outra Fidélia por aqui. Quando eu nasci, por ser a primeira neta, ela foi lá em casa e disse de colocar o nome de Fidélia, porque era lindo, era o nome de uma cigana na Hungria, a rainha das ciganas, todos os homens eram apaixonados por ela. E eu fui a vítima”, brinca.
Paixão por dar aula
“Daí eu comecei a dar aula e eu gostei, gostei demais. Aquelas crianças era tão queridas, meu Deus, quando eu lembro eu choro. Eu fico sempre emocionada quando eu lembro da escola de lá”, enfatiza.
Naquela época, era uma única e grande sala de aula. Giardini dava aulas das 7h às 11h, Fidélia das 11h às 14h, e a tarde tinha um professor da primeira série das 14h às 17h.
O começo na sala de aula foi desafiados, mas ela lembra que contava muito com o apoio e experiência do pai, seu “grande orientador”.
Como a vinda de Fidélia fez o governo abrir uma turma de quarta série primário, muitas pessoas que tinham só até a terceira voltaram para a sala. Ela acabou com alunos de 20, 25 anos na carteira, enquanto ela tinha só 19 no primeiro ano.
“E os meus alunos velhinhos, tenho alunos mais velhos do que eu. Tem uns que vem dizer assim: dona Fidélia, acho que a senhora mentia a sua idade para nós, como nós somos mais velhos que a senhora”, conta, aos risos.
Escolinha rural
Ser professora no interior deixou muitas boas lembranças. Especialmente da dedicação os aluninhos, crianças que andavam quilômetros a pé até a escola, que não tinham calçados, ajudam os pais na lavoura – e justamente por ter os pais por perto, tinham bastante aplicação nos estudos.
Ela também acabava sendo suporte da comunidade para muitas coisas – quando tinham receitas médicas, por exemplos, muitas mães a chamavam para ajudar a ler as recomendações.
Em contrapartida, recebia o respeito e apoio da comunidade – além de galinhas, cestas de frutas e verduras fresquinhas.
Ela ficou na escola até 1967, quando, agora já com família formada – Fidélia teve cinco filhos biológicos e uma adotiva -, se mudou para a área central da cidade. Ela pediu transferência para a Escola Reunidas Julius Karsten, que tinha uma realidade social diferente.
Os desafios na sala eram maiores. A maioria das crianças era filhas de operários que precisavam passar o dia fora de casa para sustentar a família – não havia um suporte nos estudos, muitos não faziam as tarefas, um contraste forte.
Ela permaneceu por 13 anos na unidade antes de se aposentar.
- Catecismo de cor
Uma das histórias que Fidélia se diverte contando é da época em que pai dela foi transferido para dar aulas em Rio Vermelho, atualmente São Bento do Sul. Isso aconteceu por questão política, com a derrota do partido que ela apoiava, do amigo e compadre Artur Muller. Lá, comunidade de poloneses, o bispo Dom Pio de Freitas pediu a Giardini que catequizasse as crianças que não recebiam a comunhão. Como sempre, a pequena Fidélia acompanhava tudo. Um dia antes da comunhão, quando o Bispo estava na comunidade para fazer um teste com as crianças, lá foi Fidélia pedir para provar que sabia o catecismo de cor também. Com tudo na ponta da língua, o Bispo pediu para a família aprontar uma roupa que ele iria dar a comunhão a ela. “Sábado de manhã a mãe foi para São Bento comprar a fazenda e ela mesmo costurou meu vestido, eu tinha 6 anos”, conta.
As artes de dona Fidélia
A casa onde a família dela viveu, em uma lateral da Erwino Menegotti, foi tombada como patrimônio histórico, mas está caindo em ruínas. Não se pode reformar sem seguir critérios de restauração, algo oneroso para aposentada.
Mas com o terreno grande, ela tem sua casa ao lado. Adentrando pela cozinha, as cores dos quadros pintados por Fidélia recebem os visitantes. Tem flores, paisagens de inverno, praias, montanhas, e por aí vai.
Pintar é uma de suas paixões. Ela começou a atividade em um cursinho oferecido pela Prefeitura de Jaraguá do Sul e até hoje vai toda semana a um atelier para colocar os pincéis em ação.
As paredes de todos os cômodos estão tomadas, então começou a aceitar encomendas. Um amigo aqui, outro ali. Foi se espalhando no boca a boca. “No ano passado eu vendi tantos quadros. Aquele de Jesus eu pintei vários”, relembra.
- A vila do Lenzi
O sobrenome de Fidélia é difícil não ser reconhecido. O pai dela, Giardini Lenzi, comprou um terreno no final da década de 1950, e começou a lotear. A ex-professora lembra que eram arrozeiras, tudo área rural. Compradores foram aparecendo e as pessoas que foram batizando o local: “ah, lá na Vila do Lenzi”.
Além de mostrar os que estão na casa, Fidélia corre em busca do celular pra mostrar as artes que postou no Instagram – as paisagens estão entre fotos dos netos, filhos, amigas…
E assim vão os dias da aposentada, tem atividades todas as tardes, de segunda a sexta. Como diz que não “deu pra motorista”, o seu negócio era mesmo a bicicleta que ela usava para percorrer distâncias invejáveis, atualmente conta com um “Uber particular” que tem seu cronograma semanal
Nos despedimos com um sorriso no rosto. Fidélia mais uma vez foi se desculpando, dessa vez por ter “falado demais”. Mas a digo que foi pouco, afinal, muitas boas histórias devem ter ficado para trás, muitas delas não cabem em apenas duas horas de conversa. “Sim, tenho muita história para contar”, finaliza, e eu tenho certeza que cabem em um livro.
Sobre o artigo que você leu
“Avós de Jaraguá” é uma série sobre o que podem contar e inspirar pessoas idosas de Jaraguá do Sul que seguem na ativa, sendo realizando sonhos, se mantendo ativos na profissão, exercendo algum trabalho voluntário, ou até mesmo encontrando novas paixões. Conhece algum vovô ou vovó cuja atitude provoca admiração?
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