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Quem costuma percorrer a estrada Quirino Lunelli de bicicleta, ou já adentrou a localidade de Ribeirão Grande rumo aos hotéis e pesque-pagues, certamente notou no caminho uma robusta serraria com ares de outra época.
Os olhos não se enganam, a estrutura está há mais de 70 anos em atividade e preserva muito de suas características originais nas mãos de Jair Alchini, 54 anos, um verdadeiro apaixonado por história.
Em seu pequeno escritório, uma bela casinha de madeira já na entrada, Alchini recebe os clientes em meio a fotos e objetos antigos que forram a parede.
Essa relação com preservar antiguidades veio com ele, bem antes que pudesse entender a relevância do que guardava.
“Eu sempre fui ligado, é uma coisa espontânea. Quando eu era piá, eu acho que tinha 8 anos, porque era em 73,74, que meu pai fez a casa nova. E no desmanchar a casa velha começaram a jogar coisas fora, tocar fogo. E eu não sei porque cargas d’água, tem coisas que só os espíritos para explicar, eu fui lá e passei a mão em um monte de papel e cartas e guardei. Mas tu imagina isso, uma criança”, conta.
Isso só foi crescendo com o passar dos anos e levou ele, mesmo contra o movimento de modernização, a manter na serraria as estruturas originais de 1944.
Calhas de pedra que encanavam a água para mover os equipamentos, a roda d’água, e o famoso pica-pau – que ele liga religiosamente todo fim de ano.
Pesquisar, manter e recontar essas memórias faz parte da trajetória de Alchini por anos.
Como tudo começou
A serraria foi comprada pela família Alchini, na época os tios e pai de Jair, em 1954 diretamente dos fundadores. Ele se orgulha em dizer que a empresa está entre as mais antigas de Jaraguá do Sul, junto com Moinho Jaraguá, Curtume Schmitt e outras.
Ela foi criada por grandes figurões da época: Eurico Doubrawa, Giardini Lenzi, os irmãos Rubini, Constantino, Horácio e Virgílio; Arthur Muller e o Mário Tavares da Cunha Melo.
“Eu não tenho documento disso, mas pelo registro dos que moravam aqui na época, a divisa era o rio e isso aqui pertencia a Corupá. Como esses empresários montaram isso aqui, eles mudaram a divisa numa linha seca, lá fora antes da ponte da Lunelli, e fizeram uma linha imaginária e passaram isso aqui para Jaraguá. Então você vê o poder, não é de hoje que interfere”, conta sobre suas pesquisas.
A estrutura de robustas madeiras encaixadas teria sido construída por uma família de marceneiros ainda mais antiga na região, os Hoch – que depois se mudaram para Corupá.
“Ela era uma empresa forte pelo que eu ouvi de homens que trabalhavam nela na época da construção. Inclusive um serrador nosso era piá quando ajudou a fazer a serraria e morreu trabalhando aqui dentro”, comenta sobre o exímio serrador Alfredo Fontana.
Alchini conta também que o então conhecido, o já falecido Alídio Floriani, foi o primeiro serrador dessa serraria. “Ele foi contratado para trabalhar aqui porque ele jogava muito bem futebol, e esses empresários eram donos do time de futebol”, diz.
Mudança de donos
A família Alchini, vinda de Luiz Alves, localidade que atualmente pertence a Massaranduba, havia chegado a Ribeirão alguns anos antes.
Em 54, o pai de Alchini, Tobias, e os tios Celeste e Eustáquio compraram a estrutura e começaram a tocar o negócio. Jair nasceu e foi criado entre toras e tábuas.
“Nós trabalhávamos mais no mato, aqui quem cuidava era o meu tio. A gente tinha um terreno, bem em cima da Serra de Ribeirão Grande, onde vai para Santa Luzia. Lá nós cortamos banana, tinha porco, plantação de pinus, nós íamos de bicicleta ou carroça daqui até na entrada, e depois íamos a pé até lá em cima do mato para trabalhar. Era judiado”, relembra.
Alchini lembra que nesses tempos, acontecia o extrativismo de madeira nativa. Por volta de 1969, o então IBDF, hoje Ibama, trouxe a obrigatoriedade do plantio de pinus para corte – e demorou para os clientes, acostumados com madeiras nativas, se acostumarem à nova realidade.
Tudo manual
“Bem nos tempos do meu pai, era com machado ou traçadeira, eu ajudei o pai a cortar alguma tora com traçadeira. Nós éramos piazão e o pai ensinava a gente”, conta Jair.
Quando a serraria foi construída, era movida com uma roda d’água alimentada pelo Ribeirão Grande que até hoje corre por baixo da estrutura em canos e calhas de tijolo e pedra.
Por conta de enchentes que aconteciam, que eram pequenas, mas frequentes, o nível do rio fazia uma frenagem na roda, explica, e foi feita então uma turbina para mover os equipamentos. Essa turbina foi construída por Frederico Vasel.
“Era uma rotina anual [dos indígenas], à medida que o tempo foi passando, foi criando uma cobertura sobre esse carvão e há uma clara evidência que esses vestígios encontrados e preservados no solos eram fogueiras erguidas pelos botocudos [termo genérico dado à etnia pelos colonizadores]”, conta.
No vídeo, o tal do pica-pau funcionando:
“Está aí até hoje, eu restaurei ela. Eu quero fazer a calha de madeira como era antigamente, com a mesma estética, para tocar com a turbina. A turbina era uma coisa mais moderna na época, era mais chique”, conta, bem humorado.
A energia elétrica chegou na região por volta dos anos de 1970.
“Mas nós tínhamos energia em casa porque tinha uma roda d’água e um gerador, era dinamo ainda. Se acendia muita luz a correia patinava e caia, tinha que ir lá recolocar”, lembra.
Praga de pai
Jair Alchini assumiu a serraria em 1985, com 19 anos, logo depois de volta do serviço militar. O pai cedeu a parte dele e o tio facilitou a compra da outra. Eles queriam parar.
Meio que pela herança familiar, muito pelo gosto, se vão 35 anos de trabalho. Ouvir o rio, as serras e tratores funcionando faz parte da vida. Ele diz que quando a serraria passa dias sem funcionar, até parece que o mundo acabou.
“Na verdade a gente se criou nisso. Eu sempre tive uma paixão por lidar com madeira, sempre gostei desde piá”, comenta.
Atualmente, Alchini teve que se “desacostumar” com o trabalho de serralheria em si. Passou 13 anos trabalhando com um osso da mão quebrado, depois quase perdeu um dedo em uma obra no sítio dele no Manso. Mas a relação com trabalho segue, agora mais na orientação.
“Tem uma matéria que saiu na Itália de dois irmãos Alchini e conta a história do amor e da paixão que eles tem pela madeira. Então vem desde lá. Está no sangue mesmo, não adianta, é praga de pai”, comenta aos risos.
Trabalho nos dias atuais
Jair Alchini conta com satisfação que por muitos anos sua serraria foi uma das únicas legalizadas em toda região. Isso foi na época em que ele foi pra faculdade, aos 37 anos, cursar Direito, e houveram muitas mudanças na legislação.
“Tendo a serraria, filho pequeno, lascado e fazia de manhã ainda, que nem filho de rico. Voltava, trabalhava até 10h, 11h da noite e ia tocando”, relembra a rotina na época.
Como tinha juízes da cidade como professores, ele levava os problemas para a sala de aula e ia organizando a serraria.
“Eu fiz tudo dentro da lei”, diz. “E começou a entrar serviço e eu ganhava madeira do Ibama – porque o único jeito de emitir documento era pra mim”.
“Aí começou a entrar o sistema on-line, imagina, já era difícil olhar pro computador, mexer nele mais ainda. Depois ajudei a legalizar umas serrarias aqui, eu sabia o trâmite e eu me dava com os concorrentes”, lembra.
Em um período, Alchini conta que chegou a ter 16 funcionários, quando ainda fazia o corte de madeira. Aos poucos, foi mudando o foco e hoje ele compra apenas, trabalhando especialmente com eucalipto.
“A madeira eu compro. Eu cheguei a ter 16 empregados, no mato, trator, caminhão… Aí eu fui mudando o foco.”
A automatização também permitiu dar conta de maior demanda com mais facilidade. O tratamento na madeira vendida, com beneficiamento, também é um dos diferenciais para a venda.
“Eu boto mais gente, mais trabalho, amanhã ou depois eu tô encarangado. Eu não quero parar, mas também não quero expandir”, destaca.
De serraria a restaurante temático
Alchini conta que a região mudou muito nos últimos anos, especialmente com a preservação. Os morros antes queimados e tomados por arrozeiras e bananais voltaram a ter mata nativa – o que impulsiona outras possibilidades.
Os dois hotéis na vizinhança, o Vale das Pedras e Estância Ribeirão Grande, também ajudaram a valorizar turisticamente.
Nesse contexto, uma ideia que vem com Jair desde que comprou a estrutura ganha ainda mais força pra ele: montar um restaurante típico italiano onde hoje está a serraria.
“Quando eu comprei eu botei na cabeça que eu iria fazer um atrativo turístico para isso aqui. E eu fui teimoso, essas máquinas velhas eu fui preservando, preservando, para não desmanchar. E me incomoda onde elas estão. Se eu tivesse arrancado e feito um salão limpo, quanto espaço teria. Eu fui preservando, preservando”, conta.
Ele já buscou muitas referências para montar o lugar, tanto na Itália, como Rio Grande do Sul. “A ideia é fazer um restaurante com a temática italiana e serraria, quero fazer um ambiente e alugar, não quero tocar”, revela.
Tudo que ele colecinou ao longo dos anos, vai estar nas paredes do restaurante. E bota coleção. Muitas coisas estavam sendo descartadas, outras eram levadas por quem sabia do apreço dele por antiguidades, e assim foi juntando.
Mas certamente, digo a ele, que o restaurante será bem mais interessante se ele estiver por lá para contar todos esses causos. Tantas histórias que não couberam por aqui.
Quem quiser saber mais, o jeito, por enquanto, é ir comprar madeira na Serraria Alchini e sentar umas horinhas com seu Jair.
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